o narrador sai do labirinto
e volta a entrar nele
por Estefânia Surreira
atraído por uma história, o narrador percorre-lhe com os sentidos o centro do corpo, a espinha dorsal, até esta se ancorar firmemente em si.
seduzido que está, o narrador recria-lhe o cenário, multiplica-o, reorganiza o pensamento; conta para si, reconta para si, vezes sem conta, escavando, buscando as palavras que melhor convêm ao propósito da história. busca o sentido mais imediato das palavras, mas também o seu sentido figurativo. esse duplo sentido onde se escondem as respostas às questões mais prementes do ser humano.
é um cirurgião que trabalha incansavelmente na dissecação dos incontáveis movimentos da história.
e assim o ato narrativo se expande e ultrapassa a esfera do real. trabalhar com a tradição oral é bater de frente com o fantástico e a busca das palavras vai nesse sentido.
o narrador é um habitante do maravilhoso e do fantástico.
procura as metáforas, detém-se nas encruzilhadas, examina os símbolos por detrás de cada evento, objeto ou personagem. a jornada do herói não é mais do que a sua própria jornada interior. dissecando a história, disseca-se a si mesmo. e por isso o narrar não é só um vasto campo de experimentação e de liberdade criadora.
é essencialmente uma longa jornada, muitas vezes sofrida e solitária, em direção ao labirinto de si mesmo. o narrador move-se nesse labirinto.
sai do labirinto e volta a entrar nele.
é um movimento, para dentro e para fora de si, que nunca mais acaba.
e enquanto percorre os caminhos tortuosos da linguagem, vai acrescentando gesto, olhar, emoção,
respiração.
ele sabe que o narrar exige um corpo que fala, uma respiração firme e controlada. é na sua própria respiração, afinal, que a história encontra um terreno firme e seguro para se propagar.
e como um vento gélido, à sua passagem, o sopro dos ancestrais deixa milhões de finos cristais prateados. os finos cristais vão-se soltando e no seu lugar forma-se uma teia.
é a teia das palavras que o narrador tece.
à volta da teia gravitam os cristais das vozes que, antes de si, contaram a história que o encantou. através do tempo e do espaço, no sopro dos ancestrais,
ela viajou ao seu encontro.
e assim ela se vai adornando com as cores do imaginário do narrador.
muitos anos mais tarde, este ainda saberá contá-la como se esta fosse a viva memória de algo que lhe tenha realmente acontecido a si. no seu espírito, a história estará sempre presente e sempre em movimento. poderá oscilar ao sabor das reações de quem escuta, dos imprevistos a que a palavra oral está naturalmente sujeita, mas as imagens e a sua força motriz cristalizar-se-ão dentro de si, e aí permanecerão.
quando a voz do narrador finalmente se calar, a história continuará, no entanto, a pairar.
enfeitada de cristais prateados, ficará em silêncio,
durante dias, dezenas, centenas ou até milhares de anos, à espera de ser novamente contada. as histórias têm uma infinita
paciência.
pairam no silêncio, esperando que um ser humano finalmente as ame e as queira para si. no escuro, elas aguardam,
serenas,
pelo dia e hora certos para serem contadas.
por isso elas sobrevivem ao desgaste do tempo. são sábias e vão reencarnando sucessivamente nos múltiplos corpos de quem as narra.
adornadas de mil cristais, assim elas vão morrendo e ressuscitando devagarinho.
a cada dia, hora, minuto, segundo.
num sopro.